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O risco do bordado[1]: texto e contexto nas malhas da EJA-Rio

Autora: Elisabeth Fernandes Martini

Os caminhos para a plena aquisição da leitura e da escrita são múltiplos e buscam desenvolver, ao fim e ao cabo, a inteligibilidade do texto e plena comunicabilidade entre produtores e receptores, além de proporcionar a fruição estética por meio da tessitura da narrativa. Partindo dessa premissa, vimos, no presente artigo, dispor as estratégias que utilizamos, em turmas de EJA pós-alfabetizadas, para desenvolver o potencial criativo e comunicacional dos estudantes, por meio da escuta atenta e do exercício da autoria.

Palavras-chave: leitura; escrita; reescrita; oralidade; autonomia; autoria.

 

Como são fortes as palavras! Elas dizem coisas que só o coração escuta. Se escritas sobre papel claro, ficam mais iluminadas e eternas. Sei que as palavras podem abrir novo caminho.

Procurei dentro de mim alguma palavra dormindo. Só encontrei uma: Igualdade. Ela nos permite viver as diferenças (QUEIRÓS, 1986).

Principio este artigo com os versos que Bartolomeu Campos de Queirós tão generosamente deixou ao alcance dos olhos e do coração, para refletir sobre o que o poeta dispôs com engenho e arte: a palavra nos permite viver as diferenças. Reflexão que, por sinal, vem bem a propósito em se tratando de classes de EJA, onde a amplitude da faixa etária – a abranger jovens, adultos e idosos – e a diferença de objetivos e de percursos podem embaraçar o professor quanto ao melhor caminho a seguir no ensino de Língua Portuguesa.

Tendo acompanhado o trabalho da EJA-RIO, há alguns anos, quedei encafifada quando, mais recentemente, me dispus a pôr a mão na massa. Com mais de 30 anos no magistério público, experimentada em turmas de Educação Infantil, passando pelo Ensino Fundamental I e II, e chegando ao Nível Superior, com as turmas de Literatura Comparada, escolhi a Educação de Jovens e Adultos para encerrar com chave de ouro o meu ciclo profissional, entendendo-a como a peça que faltava para a minha completa realização. E foi o chamado ao desafio que me levou às turmas de EJA II, blocos 1 e 2, da Escola Municipal Professor Lourenço Filho, no Grajaú, Zona Norte do Rio de Janeiro.

Além da diversidade etária, percebi a questão geográfica como outra dentre as muitas especificidades da Educação de Jovens e Adultos. A localização privilegiada da escola, em rua que deu origem ao bairro há 103 anos, atrai estudantes das comunidades do Encontro, Macaco, Pau da Bandeira, Borda do Mato e Andaraí, o que se traduz em uma convivência nem sempre livre de conflitos, mas também –  e principalmente – de contributos valiosos por parte dos nossos alunos, os quais compartilham conosco experiências as mais variegadas, ainda que a violência policial, a disputa entre as facções e a tímida presença do Estado se mantenham há décadas como a tônica dominante das favelas cariocas. Por sinal, o humor do entorno – tal e qual as variações climáticas – acaba por se refletir na frequência diária.  Daí a luta incansável por parte do corpo técnico-administrativo e docente para fortalecer nos egressos o sentimento de pertencimento ao espaço educativo.

Professora recém-chegada à escola, logo percebi o empenho dos colegas em criar uma atmosfera perpassada pela afetividade; um ambiente acolhedor que efetivamente inspire o aluno a permanecer na escola e concluir o curso. Logo me vi enredada por esses mesmos laços, os quais se firmaram pela tessitura diária do espírito colaborativo, por parte de alunos e professores. Tal movimento, relevante em todas as modalidades de ensino, mais premente se faz em se tratando da EJA. Isso porque os laços com a aprendizagem formal, algo esgarçados, precisam ser resgatados, o que exige um esforço a mais do frequentador do horário noturno para tornar à prática educativa diária. Quanto ao regente que tenha em vista uma pedagogia popular emancipatória, por sua vez, há que buscar um aporte adicional de criatividade. Como Paulo Freire salientaria:

 

A prática educativa, reconhecendo-se como prática política, se recusa a deixar-se aprisionar na estreiteza burocrática de procedimentos escolarizantes. Lidando com o processo de conhecer, a prática educativa é tão interessada em possibilitar o ensino de conteúdos às pessoas quanto em sua conscientização (FREIRE, 1992, p. 16).

Ou ainda, como sublinham Sergio Hadaad e Maria Clara Di Pierro, no diálogo que estabelecem com o pensamento freireano, “o ato de conhecer, como ação humana, não se realiza de fora para dentro, mas sim por meio de uma atitude de busca, de curiosidade daquele que aprende, estimulado por quem ensina” (HADDAD; DI PIERRO, 2021, p. 2).

A gravidade dessa afirmação leva-nos ao primeiro trimestre de 2022, quando travamos os primeiros contatos com a turma 161, da EJA II bloco 2. O fato de grande parte do universo de alunos ser oriundo das turmas regulares tornou ainda mais evidente o processo de juvenilização que vimos recrudescer nas turmas de EJA, há décadas. Supomos que os dois anos da Pandemia de COVID (2020-2021) potencializaram esse processo, com vários dos egressos da rede encaminhados compulsoriamente para o horário noturno, ao completarem dezesseis anos.

O primeiro esforço empreendido pela equipe pedagógica foi restabelecer uma rotina que se perdera no correr da pandemia, delimitando os espaços e os fazeres com intencionalidade pedagógica.  Diferentemente das turmas regulares, cujos docentes cambiam de turma a cada dois tempos de aula, em média, as turmas de EJA cumprem diariamente muitas horas de atividades com um só professor. Em se tratando da EJA II, os professores especialistas se alternam a cada dia.

Por outro lado, esse tempo ampliado, ao qual as turmas de EJA são expostas, abre espaço para o exercício da oralidade, por meio das rodas de conversa e das dinâmicas de grupo, o que permitiu, por sua vez conhecer melhor os alunos, não só sob o aspecto cognitivo, ficando evidente prejuízo causado pela pandemia, mas também no que tange à subjetividade, quando puderam externar não só a expectativa com o retorno, mas também a ansiedade gerada pelo longo tempo de confinamento. Nesse sentido, a proposta de trabalhar com o gênero textual “depoimento” logo à chegada, se mostrou assaz produtivo. Havia um interesse mútuo de conhecimento a ser travado entre professor e alunos e dos pares entre si.

Primeiramente, a tônica foi a livre exposição das razões que os levaram a procurar a modalidade; suas expectativas em relação ao curso e os planos futuros. O mote para a discussão foi uma música que fez sucesso nos 90, cuja abertura dava o que falar: “Quem sou eu e quem é você, nessa história eu não sei dizer. Mas eu acredito que ninguém tenha vindo pro (sic) o mundo a passeio.”[2] Instados pela provocação, os participantes disseram a que vieram e, ato contínuo, registraram suas histórias de vida:

O que me fez voltar a estudar foi eu ter saído de um relacionamento abusivo de nove anos, que nunca me acrescentou nada. E pelos meus filhos: Valentina, Georgiana e João Victor, pra dar uma vida melhor a eles e arrumar um bom emprego. O mais importante é a minha realização pessoal. Sei que é difícil, mas estou disposta a conseguir e ser referência para meus filhos, que estão começando a vida escolar deles também (V.R., 22 anos).

A ênfase na autoria vem, desde então, se constituindo em tônica do trabalho com Língua Portuguesa, em sala de aula.  De fato, é pela expressão oral e escrita que nos colocamos e dizemos quem somos. Tal escrevivência[3], como a escritora Conceição Evaristo assim nomina, promove um desvendamento do indivíduo, o que possibilita ao professor uma diagnose das habilidades e carências a serem equacionadas.

Esse movimento de partir do texto e retornar ao texto para a aprendizagem de fatos da língua, tem se mostrado proficiente nas turmas de EJA, exatamente porque as pessoas têm muito que dizer e observam espaços estão cada vez mais restritos, que impedem a plena elocução de suas opiniões, necessidades e expectativas.  

Nesse sentido, o segundo semestre de 2022 se mostrou particularmente pródigo para exercitar as atividades de escrita e leitura em sala de aula e também fora dela. Haja vista a profusão de exposições marcantes que aportaram no Centro Cultural Banco do Brasil do Rio de Janeiro, no período. “Portinari Raros” possibilitou às turmas de EJA o contato com telas que habitualmente pertencem a coleções de particulares e, portanto, pouco conhecidas do grande público.

O horário da visita, a partir das 18 horas, e o transporte disponibilizado pela produção do evento aumentaram as possibilidades de participação dos estudantes. O grupo foi recebido em dia previamente agendado, 10 de agosto, pelos mediadores do setor educativo e puderam circular entre as obras com tranquilidade, vindo a conhecer vida e a obra do pintor conhecido como Menino de Brodowski. No retorno à escola, os comentários mostraram-se ricos em detalhes:

Gostei da parte das obras de arte que ele fez sobre a favela e gostei bastante da história de vida dele que até o final pintou. Até o ‘último’ suspiro. Lá no museu também tinha um livro com os documentos dele. Foi bem legal de ver (J., 20 anos).


O sentimento de valorização pessoal também se mostrou evidente, como C.H. registrado: “O passeio da Escola Municipal Professor Lourenço Filho foi diferente de todos os que eu já fui, pois lá tive a oportunidade de conhecer várias artes antigas. Foi uma honra para mim” (C.H., 18 anos).

Os comentários nasceram na roda de conversa, foram escritos e reescritos em sala e, por fim, lidos para os pares, vindo a compor uma antologia de impressões no “Cadernos de viagens da EJA-RIO”. Mesmo quem não pôde integrar a visita, contribuiu com a leitura de imagens da exposição, como assim o fez M.N., ao observar a tela “Marinha”, de 1953:

Bete, nesta paisagem eu vejo um mar enorme, com um navio lá no meio do oceano. Vejo muita gente no mar e outras na areia. Tem outras apreciando o mar e pessoas correndo. Tem outras embaixo do guarda-sol e outras, sentadas. O que eu vejo de mais interessante é uma imagem no chão (M.N., 50 anos).

Outra ação que rendeu frutos foi a sessão cineclube, com as turmas de EJA II, blocos 1 e 2; uma parceria das mais felizes com o professor de Geografia, na primeira semana de agosto de 2022, tendo em vista estimular nos alunos o pensamento crítico e a interação com diferentes linguagens artísticas. O filme escolhido para a exibição foi “Central do Brasil”, um drama dirigido por Walter Salles em 1998, com a interpretação especialíssima dos atores Fernanda Montenegro, Vinícius de Oliveira e Marília Pêra, nos papéis principais.

O público ficou comovido com a situação dos missivistas migrantes, a quilômetros dos locais de origem. Na roda de conversa que principiou após a exibição do filme, muitos vaticinaram sobre as dificuldades ainda maiores que o analfabeto enfrenta, sendo um sujeito posto à margem e tratado como um objeto em inúmeras situações que só fazem recrudescer o infortúnio e a solidão na cena urbana.

A partir desta provocação, os alunos das turmas de EJA II passaram à condição de autores. Não sem antes observarem as características do gênero “conto”, para melhor desenvolverem suas próprias narrativas. Alguns partiram da própria vivência e da experiência pessoal para compor a ambiência e os personagens:

Meu pai, vendo o meu grande interesse, resolveu me levar na parada. Chegando lá, me senti realizada. Eu não tinha a dimensão de como a parada era tão grande! Ela pegava a Avenida Presidente Vargas e passava pela Central do Brasil e pelo quartel.

O dia estava lindo, ensolarado. Tudo corria bem. Até a hora em que começou uma agitação. Meu Deus! Era uma égua que estava prenha. Ela deu à luz ao seu lindo filhote ali, na parada. Um lindo cavalinho! O sete de setembro sempre foi marcante na minha vida (A.P, 46 anos).

Os textos passaram a fluir e, diante do empenho de grande parte do grupo, começou a vicejar a ideia de compor uma antologia de contos, no formato e-book, com o título Central do Brasil e outras histórias. Além da turma 161, alunos das turmas 151, 152 e 162 também aderiram à proposta.

Os meses de setembro e outubro foram voltados para a revisão dos textos, em atendimento individual.  Em meio à reescritura dos contos, as dúvidas relativas aos fatos da língua afloraram, possibilitando intervenções que contribuíram para o aprimoramento das narrativas. Haja vista o conto de P.A., no qual o único sinal de pontuação perceptível era o ponto final.  Quando instado a pontuar e paragrafar o seu texto, o aluno disse, pura e simplesmente, que não sabia pontuar, o que oportunizou uma aula sobre os sinais de pontuação. Toda a turma foi convidada a realizar coletivamente a pontuação e a paragrafação do texto, com a anuência e particular satisfação do autor.

Outro conto que chamou a atenção pelo conteúdo, “O esquerdista e o direitista”, fomentou um debate da maior relevância sobre a polarização que grassa na sociedade brasileira, nos tempos atuais, com a participação dos professores de Matemática, Ciências, Geografia e Língua Portuguesa e os alunos das turmas 151, 152, 161 e 162:

O esquerdista falou:

– […] O que eu quis mostrar é que o investimento em armamento é maior do que o investimento em educação. O Estado quer combater violência com violência. A violência se combate com estudo e educação. A educação brasileira é muito limitada. Se tirar 6 em uma prova, você é inteligente. Se tirar 5, você é burro. A escola estadual/municipal brasileira, na visão do Estado, só serve para criar mão de obra barata. Por isso, muitas crianças abandonam a escola e vão para o crime (W.F., 18 anos).

As reflexões dos participantes levaram a pensar coletivamente nos fazeres para superar os discursos radicais e extremados que circulam na mídia televisiva e na rede social. Como afirma Lauro de Oliveira Lima, “Educar-se, do ponto de vista do educando é um processo de informar-se; isto é, um processo de re-agir.” (LIMA, 1984, p. 7) e complementa, mais adiante:

Não basta, como supõem os devotos da comunicação de massa, saturar o ambiente de informação: se o aluno não estiver mobilizado para recebê-la, é como se a informação não existisse… Um banquete não estimula o apetite se o indivíduo não estiver com fome… (LIMA, 1984, p. 37).

Até dezembro, pretende-se que o e-book esteja acessível aos alunos e suas famílias, assim como aos professores, funcionários e ao público em geral. Deste modo, Central do Brasil e outras histórias há de ultrapassar os muros da escola.

Os frutos começam a aparecer e levam a crer que tais experiências não findam em si mesmas. Elas passam a fazer parte de cada um de nós, contribuindo para novas leituras e percepções de mundo. O lugar onde efetivamente não cabe omissão é o espaço educativo. É onde primamos por estar e fazer acontecer.

[1] O título do artigo evoca o romance “O risco do bordado”, de Autran Dourado, vencedor do prêmio Pen Club do Brasil. “Lançado em 1970, O risco do bordado foi obsessivamente urdido pelo autor […] O resultado é um livro que consegue a façanha de retratar a experiência da lembrança com um encanto poucas vezes visto.”

[2] “Rock Estrela”, Leo Jaime, 1997.

[3] Como Conceição Evaristo explicita em entrevista à Revista PUCRS: “Vinha maturando ao longo do tempo. Em 1994, na minha dissertação de mestrado, fiz um jogo de palavras entre escrever, viver, escrever-se vendo e escrever vendo-se e aí surgiu a palavra escreviver. Mais tarde comecei a usar escrevivência”.

Elisabeth Fernandes Martini

Doutora em Literatura Comparada pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Integrante do Polo de Pesquisas Luso Brasileiras, sediado no Real Gabinete Português de Leitura. Professora da Rede Pública Municipal de Ensino do Rio de Janeiro há 34 anos. Atualmente é professora de Língua Portuguesa do EJA-Rio, na E/CRE (02.09.026) Escola Municipal Professor Lourenço Filho.

REFERÊNCIAS

EVARISTO, Conceição. Esse lugar também é nosso. [Entrevista cedida a] Ana Paula Acauan. Revista PUCRS, n. 191, jul.-set. 2019. Disponível em: https://www.pucrs.br/revista/esse-lugar-tambem-e-nosso/. Acesso em: 9 nov. 2022.

FREIRE, Paulo. Política e educação: ensaios. São Paulo: Cortez, 1992. (Questões de nossa época, v. 23).

HADDAD, Sérgio; DI PIERRO, Maria Clara. Considerações sobre educação popular e escolarização de adultos no pensamento e na práxis de Paulo Freire. In: Educação e Sociedade, Campinas, SP, v. 42, 2021. Seção comemorativa: Paulo Freire 100 anos. Disponível em: https://doi.org/10.1590/ES.255872. Acesso em: 04 nov. 2022.

LIMA, Lauro de Oliveira. Mutações em Educação segundo MC Luhan. Petrópolis, RJ: Vozes, 1984.

QUEIRÓS, Bartolomeu Campos de. Correspondência. Belo Horizonte, MG: Secretaria de Estado da Educação, 1986.

TEXTOS produzidos pelos alunos da EJA-RIO II, blocos 1 e 2, da Escola Municipal 02.09.026. Professor Lourenço Filho, no decorrer de 2022.

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