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Há um micromundo em cada palavra

Autora: Cláudia Rodrigues do Carmo Arcenio​  


A sequência didática que apresentaremos estava inserida em um projeto desenvolvido pela Escola Municipal Charles Anderson Weaver durante o segundo bimestre de 2022, denominado “O que fazemos com o planeta tem lógica?”. Esse projeto foi gerido pelos professores de Ciências e Matemática e buscou, dentre outras coisas, trabalhar os “5 Rs da Sustentabilidade” como direcionamento para o período.  Dentro desse contexto, enquanto professora de Língua Portuguesa do 7º ano, pensei em trabalhar os gêneros textuais verbete e infográfico em uma proposta em multiletramentos que promoveu um diálogo interdisciplinar, além de incluir a reciclagem como ferramenta de revitalização do laboratório da unidade escolar.

Nossa escola está situada em Coelho Neto, território da 6ª CRE, município do Rio de Janeiro. Os alunos dessas turmas têm média 12 e 13 anos, são bastante agitados, gostam de dançar, cantar, tirar fotos e fazer vídeos para postar em suas redes sociais, assim como a maioria dos adolescentes nessa fase. Por vezes, nos deparamos com comportamentos inadequados ao ambiente escolar. Desse modo, a proposta da equipe docente e gestora em trabalhar por meio de projetos visava trabalhar também a empatia, a convivência, além de facilitar aprendizagens de forma interdisciplinar.

Nesse sentido, essa sequência teve como base teórica os multiletramentos e alinhou-se com a  Base Nacional Comum Curricular (BRASIL, 2017) na escrita e interpretação de diferentes gêneros discursivos. Segundo Rojo (2015), a pedagogia dos multiletramentos compreende as práticas sociais de leitura e escrita em um contexto em que a multissemiose é constitutiva dos sentidos dos textos que circulam em sociedade. Ou seja, há uma multiplicidade de linguagens nos textos impressos, digitais, escritos, em mídias audiovisuais que agem de forma colaborativa para a interpretação, fruição e construção de sentidos.

Assim, a proposta teve por objetivo facilitar a apropriação da leitura e escrita de diferentes gêneros textuais, facilitar aprendizagem dos conteúdos gramaticais por meio do uso desses conteúdos durante a elaboração dos textos e promover a interdisciplinaridade, colaborando com as aprendizagens dos conteúdos referentes à disciplina de língua portuguesa e ciências naquele bimestre. Além disso, a elaboração de objetos com papelão fomentou a produção artística estabelecendo diálogo também com as artes visuais.

 

PALAVRAS QUE CARREGAM UM PEQUENO MUNDO

A ideia central da proposta que elaboramos foi partir de uma palavra-tema para construir aprendizagens. A escolha dessas palavras deu-se em vínculo colaborativo com a disciplina de ciências sendo escolhidas palavras que fariam parte das aprendizagens dessa disciplina naquele bimestre.

Em conversa com o professor de ciências, concluímos que o conteúdo programático consistia na citologia, progredindo para o estudo dos seres vivos pluricelulares. Nesse sentido, pedimos ao professor que relacionasse as palavras-chave de suas aulas para que durante as aulas de Língua Portuguesa pudéssemos ampliar o léxico dos alunos construindo verbetes. Após a construção dos verbetes, passamos a produção artística dessas palavras tendo o papelão como tela de pintura. Desse modo, após a construção de cada verbete os alunos construíam objetos que materializam as palavras investigadas.

Também observamos que o laboratório de ciências da unidade escolar poderia ser revitalizado com esses materiais produzidos pelos alunos, sendo esse ambiente eleito para a exposição dos trabalhos artísticos que poderiam ser posteriormente utilizados como material didático para o desenvolvimento das aulas.

Portanto, essa sequência didática teve a duração de um bimestre e foi realizada em 8 etapas:

 

  1. Planejamento

Selecionamos as palavras-tema e solicitamos à direção a aquisição de material para as atividades artísticas (tintas e pincéis). Também pedimos aos alunos que trouxessem papelão, além de solicitar aos funcionários da escola que reservassem as caixas oriundas de produtos e materiais que chegavam à unidade escolar e que muitas vezes eram descartadas. 

Outros pontos importantes do planejamento foram: a escolha dos gêneros textuais que seriam trabalhados o diálogo com o professor de ciências e a organização dos espaços da U.E. que seriam utilizados no projeto.

 

  1. Apropriação do gênero textual verbete: Tem um dicionário em minha aula

Nessa etapa, levamos vários dicionários para a sala de aula e pedimos para os alunos pesquisarem e anotarem o significado das palavras: alegria, empatia, amizade e amor. Após o registro, buscamos identificar, por meio da comparação com outros gêneros textuais, a estrutura do gênero textual verbete, sua finalidade e ambiente de circulação. Também desenvolvemos o hábito de pesquisar no dicionário as palavras que apareciam nos textos estudados, cujos significados os alunos não conheciam.

Nesse momento, apresentamos à turma a proposta de elaborarmos uma espécie de glossário virtual com palavras que faziam parte do léxico da disciplina de ciências, para posteriormente elaborarmos produções artísticas que representassem fisicamente os verbetes elaborados. A produção do glossário seria consolidada através do aplicativo Canvas, conhecido pelos templates gratuitos e pela possibilidade de criar posts interessantes para utilizar em redes sociais. Ao ouvirem a possibilidade de aprender a criar posts para as redes, as cinco turmas abraçaram a ideia e começamos a trabalhar. Esse ponto foi uma das principais motivações dos alunos.

 

  1. Uso pedagógico do celular em sala de aula

Após a apropriação do gênero, a cada semana escolhíamos uma palavra para pesquisar. Para realizar as pesquisas utilizamos como ferramenta a internet disponível na escola e os celulares dos alunos. Toda semana eu deslocava as turmas para a sala de leitura, pois nesse ambiente a internet possuía uma melhor conexão. Além disso, o espaço também favorecia a pesquisa em livros disponíveis na escola, caso os alunos não conseguissem o acesso. Com a palavra-chave em mãos, os alunos deveriam pesquisar em sites específicos os sentidos das palavras e depois elaborar uma acepção individual, registrando-as no caderno. Além disso, os estudantes deveriam pesquisar as imagens que gostariam de reproduzir e registrá-las. Essa pesquisa orientada também buscou auxiliar os alunos a discernir sites confiáveis para navegação na internet.

 
Figura 1: Pesquisa na sala de leitura


Fonte: Acervo pessoal da autora

  1. Verbetes colaborativos

Depois de realizar a pesquisa, começamos a construção coletiva dos verbetes da turma. Os alunos traziam suas descobertas e construíamos um texto coletivo, que como um “quebra-cabeça” era elaborado de forma colaborativa com as informações colhidas durante as pesquisas. Isto é, um texto completava o outro de forma a construir um verbete com a acepção mais completa da palavra. Para essa construção, posicionei-me como escriba dos alunos, que ditavam os trechos de suas pesquisas e depois organizávamos em conjunto a versão final do verbete. Nesse contexto, atuei fazendo inferências sobre o texto, trabalhando a habilidade de revisão textual de forma coletiva.

 

  1. Vamos pintar?

Imprimi todas as imagens que os alunos selecionaram para servir de modelo para a construção dos objetos. Os alunos traçavam no papelão e depois pintavam com pincéis e tinta guache. Eles adoravam essas aulas de pintura. A princípio usávamos as mesas da sala de leitura, depois começamos a usar o laboratório. O laboratório tornou-se um ambiente propício para essas aulas, pois possuía torneiras para lavar os pincéis e diluir a tinta. Construímos vários objetos grandes para serem expostos: diferentes tipos de célula com suas respectivas organelas e seres vivos uni e pluricelulares.

 
Figura 2: Pinturas

Fonte: Acervo Pessoal da autora

 

  1. Os 5 Rs da sustentabilidade

Durante o projeto, levei alguns textos para os adolescentes interpretarem com essa temática. Nesse sentido, trabalhamos o repensar, recusar, reutilizar, reduzir e o reciclar. Depois, pedi que eles relacionassem o reaproveitamento que estávamos fazendo do papelão com os textos lidos. Assim, repensamos o uso do papelão, geralmente descartado, recusamos o uso de materiais novos como cartolina, reduzindo a produção de lixo e reciclamos, produzindo material didático para o laboratório.

 

  1. Glossário e infográfico da turma

Consolidadas as escritas colaborativas dos verbetes, começamos a elaborar os glossários da turma. Para isso, preparamos uma aula no aplicativo Canvas, no qual os alunos selecionaram os templates que mais agradaram, acrescentaram fotos da experiência e as escritas dos verbetes. Cada turma criou o seu glossário, que foi organizado por meio do gênero textual infográfico,  um gênero textual multissemiótico e de boa circulação nas plataformas digitais. 

 

Figura 3: Construção dos infográficos 

Fonte: Acervo pessoal da autora

 
Figura 4: Infográficos e verbetes

   

Fonte: Acervo pessoal da autora

 

  1. Um laboratório revitalizado

Finalmente iniciou-se a fase de ornamentar o laboratório com os objetos e glossários produzidos. Imprimi os glossários em um tamanho grande, como uma espécie de cartaz e esses foram fixados juntamente com os objetos de papelão em todo o espaço do laboratório, tornando o ambiente amplamente educativo.

 

Figura 5: Laboratório antes da experiência. 

 

Fonte: Acervo pessoal da autora

 

Figura 6: Laboratório após a revitalização

Fonte: Acervo pessoal da autora.

 

AVALIAÇÃO E CONCLUSÃO

A proposta foi muito produtiva e favoreceu diversas aprendizagens tanto em Ciências quanto em Língua Portuguesa. Especialmente em Língua Portuguesa, trabalhamos leitura, interpretação, apropriação do gênero textual, produção de texto, concordância verbal e nominal, o papel da pontuação na produção de sentidos do texto dentre outros conteúdos inerentes a produção e a escrita de textos. Outras aprendizagens também foram alcançadas como trabalhar em equipe; respeitar os turnos de fala e opiniões dos demais colegas; trabalhar de forma colaborativa para construir textos em que a multissemiose é constitutiva de sentidos. Também, observamos muita motivação por parte dos alunos para desenvolver as etapas da sequência, inclusive entre os alunos mais indisciplinados. Um ponto interessante a ser destacado e que pode confirmar a construção de conhecimento é que, apesar de realizarem as mesmas etapas, cada turma construiu verbetes e infográficos sobre as mesmas palavras, mas totalmente diferentes uns dos outros.  Vale ressaltar que a escola, sobretudo através dos agentes educadores, se mobilizou positivamente para que uma das alunas, que é cadeirante, pudesse acessar todos os espaços utilizados possibilitando sua plena participação nas atividades propostas. 

A avaliação foi de caráter formativo. Nesse sentido, a professora acompanhou as escritas individuais e coletivas realizando inferências a fim de favorecer aprendizagens.

É evidente que sempre podem ocorrer alguns impasses pelo caminho: indisciplina em alguns momentos, adaptação e adequação para o uso dos espaços escolares, conscientização do uso e manutenção dos materiais utilizados no projeto. Contudo, a experiência foi sem dúvida motivadora. Além desse ponto, houve um desdobramento interessante: os alunos estão produzindo um documentário relatando como foi a experiência de revitalizar o laboratório de ciências.

Acreditamos que essa sequência é passível de réplica com as devidas adequações em outras unidades escolares e, portanto, pareceu-me válido compartilhar.

Cláudia Rodrigues do Carmo Arcenio

Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Educação, Demandas Populares e Contextos Contemporâneos na UFRRJ (2019). Mestre em Educação, Demandas Populares e Contextos Contemporâneos pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro - UFRRJ (2019). Pós- graduada em Alfabetização e Letramento pela Universidade Gama Filho (2013). Graduada em Letras, Português e Literaturas na Universidade Estácio de Sá (2007). Atuou como professora substituta do Departamento de Letras e do Departamento de Educação da UFRRJ. Atualmente é professora efetiva da Prefeitura Municipal de Nova Iguaçu (RJ) e da Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro, na E/CRE (06.25.005) Escola Municipal Charles Anderson Weaver. Ministra palestras e realiza treinamento para professores de redes municipais. Autora de livros e artigos sobre alfabetização, letramento e dificuldades de leitura e escrita.

REFERÊNCIAS

ROJO, Roxane; BARBOSA, Jaqueline P. Hipermodernidade, multiletramentos e gêneros discursivos. São Paulo: Parábola, 2015.

BRASIL. Ministério da Educação. Base nacional comum curricular: educação é a base. Brasília, DF: Ministério da Educação, 2018. Disponível em: http://basenacionalcomum.mec.gov.br/

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