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Entrevista com a professora Jonê C. Baião

 Entrevista com a professora Jonê C. Baião

Entrevistada: Jonê Carla Baião​

 

1. A Revista Carioca de Educação Pública tem como foco da edição o tema “Leitura e Escrita: uma conquista de todos os segmentos.” Como pensar uma proposta capaz de mobilizar leitura e escrita que perpasse por todos os anos de escolaridade?

Essa pergunta é importante. Eu sou professora de anos iniciais no CAP da UERJ, fui professora do município, do 6º ao 9º ano, e estou aposentada. Como professora do ensino fundamental, penso que a nossa busca básica (ainda não alcançada) é a alfabetização. Precisamos alfabetizar crianças e jovens. Mas vou ampliar o que eu estou chamando de alfabetização, não vou entrar aqui numa discussão teórica, se é alfabetização, se é letramento. Me refiro a trabalhar com um conceito de ler e escrever, e ler e escrever criticamente. Eu trabalho muito nos anos iniciais com o conceito de textos autorais.

2. Quando falamos de textos autorais, há discussões sobre o que seja autoral, com vários fundamentos e espaços. Pode nos falar um pouco do que seja o texto autoral, a que se refere?

Falarei de um lugar elementar. É claro que, quando eu penso em autoria eu estou pensando em Bakhtin e estou pensando em João Wanderlei Geraldi, com o texto na sala de aula. Tenho aí os autores com os quais eu trabalhei e trabalho uma vida inteira. Mas, quando eu estou falando de autoria, estou falando de ouvirmos o que a criança e o jovem (e aqui estou pensando mesmo no ensino fundamental) têm a nos dizer. João Wanderlei Geraldi discute que na escola, por muito tempo, trabalhou-se com a ideia de que a criança escreve um texto, uma redação escolar, como aluno, para ser lido por um professor, e esse professor corrige o texto. Não é? Em busca de erros.

Acho que nós professores temos que, cada vez mais, trabalhar com a ideia de ler os textos dos nossos alunos. O que eu quero que o meu aluno diga para mim, como eu
quero interagir com o texto dele. Então, se eu saio da função professor e entro na função leitor, eu vou fazer inferências, vou completar vazios que o texto tem …até com os grandes autores é assim que eu faço. Vou trabalhar buscando entender o estilo do meu aluno. Vou entender que meu aluno tem um estilo, que cada um vai escrever de uma maneira diferente, e vou dialogar com o estilo de escrita dessa criança. Então, é um trabalho de subjetividade. É um trabalho de autoria, no sentido de buscar cada sujeito que está lidando com a relação da leitura e da escrita.

3. Qual a importância de ser esse professor leitor dos textos dos seus alunos?

Sei que para nós, professores, é muito difícil. Já falei disso algumas vezes. Escrevi um texto que fala sobre o que é o professor leitor e formador de leitores, e entendo que só seremos formadores de leitores se formos leitores do texto dos nossos alunos. É muito fácil dizermos que lemos Manoel de Barros, Paulo Freire, e, nesse momento, estou falando de literatura e texto técnico, mas, na sua sala de aula, quantas vezes o seu aluno te entregou o texto e você leu e dialogou com a discursividade que ali estava? Quantas vezes olhou pro seu aluno e começou a buscar os sentidos daquelas escritas que ele produziu? Desde a mais tenra idade, desde a aquisição da alfabetização, estou falando daquela criança que está testando letra, som; a criança que troca a letra, mas que está com a intenção do que vai dizer. Falo até daquele jovem, lá no 9° ano, quem você solicitou que se posicionasse sobre um determinado assunto, e, quando ele se posicionou, você discordou da ideia dele e não dialogou com a autoria que ele trazia. Então, é desse lugar de professor leitor de texto que queremos pensar.

 

4 – Professora Jonê, nesse momento muitos professores estão perguntando “e a questão ortográfica”, “a questão da correção”?

 Eu ainda não estou discutindo isso. Porque enquanto eu vou atrás da correção, da precisão e de um texto pronto, de um texto escolar, eu perco a discursividade.

Quando eu busco um texto autoral, um texto discursivo, o encantamento do meu aluno e da minha aluna pela escrita vai fazê-lo saber que seu texto precisa ter legibilidade, porque ele quer que você leia o texto, que ele leia e que os colegas leiam …então ele mesmo terá essa preocupação: “ih, e eu queria dizer uma coisa aqui e não disse”. Leia junto com ele, ele fará a correção, a revisão do texto dele, junto com você ou com os colegas. O professor irá perceber, de acordo com o momento do seu aluno, se ele já tem que saber, já pode saber e muitos já sabem que o nh é diferente do lh, que existe o R, o RR, o S, o SS e o cedilha. O aluno vai identificar. Ele vai sinalizar se a intervenção ortográfica vai ser necessária naquele momento, porque ele terá “escuta” para entender a função da ortografia. Percebemos essa curiosidade, essa investigação, na criança que ousa escrever textos autorais, não temos relato de crianças que ficaram escrevendo errado, porque ousavam escrever. 

5 – E como esse processo se dará no Ensino Fundamental II?

No sexto e nono ano, trabalharemos muito com as palavras, com a carga semântica das palavras. Dá trabalho e precisamos tomar cuidado porque, às vezes, na nossa conversa, pode parecer que estamos separando em etapas. Não tem etapas, tudo acontece ao mesmo tempo. O estudante tem que escrever, tem que ler e reler, tem que ter preocupação com a legibilidade do texto. Entenda-se por legibilidade um texto de boa caligrafia, não me importa se script ou caixa alta ou cursiva, mas uma boa caligrafia e com a ortografia considerada padrão, dicionarizada. A questão que eu estou discutindo é como atropelamos essas etapas e embotamos o conteúdo do texto. De modo direto: o conteúdo. O que está escrito? E para que o estudante está escrevendo? Está escrevendo só para ser corrigido? Ou está escrevendo para dizer algo, para ser “lido”?

 

6 – Como o professor pode dialogar com os materiais disponibilizados, para que a prática do texto autoral aconteça de forma a contribuir para o desenvolvimento do estudante?

Quando falo dessa escrita autoral, eu falo como a professora do município que fui. Temos os materiais que o município produz. Temos o diálogo com os livros didáticos, que eu sempre privilegiei. São materiais produzidos para este fim. Eu usava o material didático, o livro didático, mas também fazia e faço propostas que têm muito a ver com as situações do cotidiano da turma. Hoje, por exemplo, estamos vivendo um momento em que não podemos esquecer que é a volta às aulas após uma pandemia. Temos lido muitas notícias. Sabemos que estão caindo no nosso colo de professores crianças e adolescentes com sofrimentos. Muitas vezes, passamos por cima desses sofrimentos em nome de conteúdos. O que pode nos ajudar a organizar e a pensar esses sentimentos? A linguagem. Estamos falando aqui também da linguagem escrita, do desenho, do corpo, das diferentes formas de dizer, argumentar, narrar, descrever, pensar o mundo.

 

7 – Sabemos ser possível, para o professor, lançar mão de situações cotidianas para desenvolver a linguagem escrita em seus textos autorais. Como você vê a importância desse processo?

Muitas vezes, eu dialoguei com os meus alunos, não sobre como foram suas férias, não sobre o que fizeram no final de semana, mas sobre quem são eles. Então, todos os meus primeiros anos, quando eu chegava às turmas de sexto ao nono ano, meu primeiro dia de aula era “quem é você?”. Algumas turmas em que os alunos já estavam juntos há algum tempo, eu brincava assim: “apresente o seu colega”, e era para apresentar por escrito. Quando eu falava isso, eu não dizia nem discutia com eles que poderia ser uma descrição física, ou uma descrição emocional, mas pedia que eles tentassem falar da pessoa. Muitas vezes, eu lidei com esses materiais, e eles foram motivos de algumas escritas minhas, porque não foi fácil também, como professora, ler textos que eram textos-denúncia. 

 

8 – Fale-nos sobre esses textos-denúncia, qual a importância deles como textos autorais?

 Eu acho que a gente precisa tornar esses textos materiais de trabalho. O que eu estou chamando de texto-denúncia? Quando uma aluna escreve para mim que estava chegando naquela escola pela primeira vez, vinha de São Paulo, que morava com o pai e que veio morar com a mãe, e deixou de morar com o pai porque o pai batia nela, mas, quando passa a morar com a mãe, o padrasto violenta. Isso remete ao que eu falei lá no início que, quando pedimos para um aluno escrever, quando, temos essa proposta e aqui estou falando de textos que falem de vida e de sentimentos. 

É importante porque crianças e jovens querem se apresentar, querem ser lidos e escutados. Então, estou falando de uma escrita que é o que vamos chamar da escrita de si. A escrita que fala do lugar onde mora, com quem mora, dessa criança que se apresenta. E eu posso dizer, meus caros colegas de sala de aula, o quanto dessa escrita é importante. ​

A partir daí, o professor de geografia pode discutir espaços geográficos, o professor de história, o professor de biologia, e todos os outros. Vamos escrever sobre como é. 

9 – Professora, muitos irão perguntar: “Mas o papel de propor atividades de leitura e escrita não é do professor de língua portuguesa ou do professor alfabetizador?”

Precisamos tirar do lugar do professor de português, ou do professor alfabetizador, esse lugar de ler a escrita de alunos e de propor atividades de leitura e escrita. O professor de português vai pensar atividades específicas da comunicação e da interação, com o que seja o ensino de língua portuguesa. Aqui, antes de ensino de língua portuguesa, eu estou falando de leitura e escrita. Estou voltando a um ponto, e é o que nós dizemos que no Brasil está faltando, que é o nosso aluno que leia e escreva com autoria, com autonomia e que não tenha medo de escrever, pois sabe que ele pode ler e escrever, porque vai ter alguém que leia o texto dele, vai ter alguém que interaja com o texto dele, vai ter alguém que tenha escuta sensível ou leitura interacional com o seu texto. Isso é uma coisa. Agora eu vou falar do professor de português e das propostas textuais.

Aprendemos, desde o curso normal, na formação de professores, que a escrita tem uma funcionalidade. Precisamos saber para quem estamos escrevendo, porque estamos escrevendo, quais os propósitos daquela escrita.  Isso nos remeterá aos trabalhos com gêneros textuais.  Por exemplo, aqui eu estou com vocês numa conversa. Numa entrevista sobre o trabalho docente. Então, aqui eu sei que eu estou me dirigindo para professores. Portanto, quando os nossos jovens e as nossas crianças estão escrevendo, para quais destinatários eles estão se dirigindo? Precisamos desfocar aquela figura do “escrevo para o professor corrigir”. O estudante está escrevendo para quem? Ele está escrevendo uma carta? Ele está fazendo um podcast? Ele fará um vídeo? É um vídeo para a comunidade da escola? É um vídeo para a família? A quem se dirige o texto, seja o texto oral ou escrito, seja o desenho? Vamos falar também do texto não verbal?  Para todas as produções de diferentes linguagens, que estamos fazendo em sala de aula, precisamos sempre discutir “para quem eu estou escrevendo”. Para que, de fato, não tornemos isso um arremedo de autoria, porque muitas vezes a criança terá medo de dizer o que ela de fato pensa. Nós já paramos para pensar que alguma de nossas crianças não tem quarto onde dormir?

 

10 – Quando o professor trabalha com textos, o que é preciso considerar?

Quando trabalhamos com textos, como se existisse uma universalidade, trabalhamos com a ideia de que todo mundo tem uma casa com quarto, cozinha e banheiro, no mínimo. O que é quarto? O que é cozinha? O que é banheiro? Essas particularidades aparecem quando a criança lê um texto. Eu falo aqui de coisas óbvias, como uma casa. Entretanto, vamos pensar sobre conceitos que as crianças têm e quando elas não entendem um texto que estão lendo. Elas não entendem por quê? Porque não souberam ler, não souberam decifrar ou não entenderam aquele mundo que está ali naquele texto, e, muitas vezes, pode não ter nada em comum com o mundo dela? Então é tarefa nossa explorar as textualidades, as discursividades, os conteúdos de textos, tanto os lidos quanto os produzidos pelas crianças, na sua densidade semântica. Para além da questão ortográfica.

 

11 – Levando em consideração as diversidades, como trabalhar a escrita, observando esse contexto individualizado?

O trabalho com gêneros textuais vai definir muito isso. Qual gênero eu estou trabalhando? Rojane Roxo é uma autora em destaque sobre a discussão das produções de textos multimodais. 

A maioria de nós, professores, é do tempo de uma linguagem essencialmente escrita. Hoje, estamos lidando com jovens e adolescentes com uma linguagem essencialmente em movimento. A linguagem dos memes, a linguagem da autoria que deixa de ser uma autoria individual para ser uma autoria coletiva. Aquele meme que foi criado e que depois é modificado, alterado. Então, os conceitos de intertextualidade, o contexto de diálogo entre diferentes textos, entre diferentes informações, é fundamental para trabalhar esses gêneros textuais que não exclusivamente a escrita.

12 – Dar significado ao que é trabalhado com as experiências dos estudantes, deixando que eles exteriorizem seus conhecimentos prévios, é outra questão fundamental.

Uma outra coisa de que eu tenho falado muito, é sobre esse processo de escrita, de uma auto narrativa, uma escrita de si ou uma escrevivência, explorando o conceito de Conceição Evaristo, mas eu também quero falar de que precisamos, cada vez mais, discutir os tipos textuais, a narrativa, a descrição, a argumentação como tipos que se atravessam. Quando eu tenho um texto narrativo, eu também tenho ali a argumentação, eu tenho o tempo todo o autor se posicionando. Eu preciso da descrição também como base. Logo, trabalhamos com a ideia de que esses tipos atravessam os diferentes gêneros. Outra questão que eu quero desmistificar é que, por muito tempo, trabalhamos com a ideia de que a criança narra, descreve, para só um dia argumentar. Quero desmistificar também que crianças não poderiam trabalhar com a crônica e o conto, que seriam textos mais elaborados para mais tarde.   Tenho trabalhado com crianças de terceiro ano, crianças de oito e nove anos, as crônicas de João do Rio: “A Alma Encantadora das Ruas”. Discutimos o projeto do bairro com as crianças, e eu levo pequenos trechos das crônicas de João do Rio, e é muito pertinente observar como as crianças depois escrevem sobre as suas ruas, sobre a rua da escola. Uma aluna me relatou, na semana passada, que (assim como diz João do Rio) foi a “uma rua que ela nunca tinha ido antes e que deu um sentimento estranho, um sentimento de desconhecido”, entrou com medo naquela rua. Podemos ver, então, que as crianças se apropriam dos textos ditos clássicos, quando explorados, lidos e relidos por elas, e elas também podem fazer textos que dialoguem com esses textos. De novo estamos falando de intertextualidade. Foi interessante nesse processo as crianças descobrirem o conceito. É óbvio que falamos da nossa prática, do que vivemos, mas o exemplo é só para pensarmos como tem material para explorar, para sairmos dos modelos acartilhados, dos modelos padronizados, porque só assim trabalhamos de fato com a autoria. É preciso olhar para as diversidades, para as pluralidades que aquela turma, que aquela criança, que aquela comunidade pode dialogar comigo. Eu quero dialogar? Então, tem de ter imersão naquelas realidades para que eu possa dialogar com outras realidades. Quando crianças de oito, nove anos leem textos de João do Rio, escritos em 1905 a 1908, 1909, e elas percebem que foram escritos há mais de um século e que esses textos ainda reverberam e dialogam com os sentimentos delas hoje, isso é discutir produção textual para além do material padronizado.

 

13 – No processo de alfabetização, com tantas dificuldades que possam aparecer nessa fase, por conta do momento de cada estudante, como o professor alfabetizador deve atuar?

Quando eu estou lidando com crianças em fase inicial da alfabetização, crianças e jovens ou mesmo adultos, uma das questões que eu sempre me coloquei como professora é: como é que eu ensino a ler e escrever? Eu dou um lápis e um papel ou uma caneta e um papel.  Normalmente no CAP temos em todas as turmas, crianças com necessidades especiais. Esse ano, na minha turma, tenho uma criança autista que ainda não lê e escreve convencionalmente. E uma das dificuldades, que essa criança tinha, era pegar o lápis e fazer traçados no papel. Ela não fazia. O máximo que ela lidava, no tempo da pandemia, na escola por tela, era com tinta. Pegava tinta e mexia, trabalhando a questão da textura. Hoje, essa criança, usando aquele recurso que temos de pesar o lápis (nós usamos o EVA em volta do lápis, que pesa um pouco, e com lápis mais grosso), ela pega o papel e começa a escrever, começa a fazer traçados, que ora aproximam-se do que seja a letra, ora aparecem como mero traçado. O que fazemos com essa criança em uma turma em que eu tenho as outras todas já alfabetizadas, lendo e escrevendo? Eu preciso discutir uma escrita com ela que faça sentido.

 

14 – Então, professora, quais recursos podem ser utilizados pelos professores alfabetizadores?

Um dos recursos que usamos muito na alfabetização é a lista. Porque a lista é um gênero textual que tem sentido. Então, a lista de nomes dos colegas de sala, a lista de familiares, a lista do que nós almoçamos na escola. Assim, a escrita na sala de aula é trabalhada não somente na hora que eu abro uma atividade de um livro ou de uma folhinha que está ali: “circule as letras do alfabeto. Circule vogais e consoantes”. Eu não preciso passar por essa atividade para ensinar meu aluno o que seja letra e número, o que seja o que Emília Ferreiro nos ensinou, lá atrás, que uma das primeiras etapas é diferenciar escrita de desenho.  A escrita do que seja a representação iconográfica. O que é escrita e o que é número. Eu não preciso fazer atividades extensas de “marque”, “risque”, eu vou produzir com textos e contextos mesmo, no duplo sentido dessa palavra. Então, eu vou contextualizar e vou ter textos o tempo todo. Esses textos podem ser, repito, as listas, as parlendas, as músicas que sabe de cor, o texto que eu leio para eles, depois vamos circulando algumas palavras que chamaram atenção. Isso, no início da alfabetização, estou falando para a criança que não está alfabetizada ou para o jovem que não está alfabetizado. Para o jovem que já sabe o que a escrita representa e que, para escrever, é preciso oralizar, materializar o que o pensamento quer dizer. Para esse jovem, que já está na etapa que sabe em que a escrita se escreve com letra e não com número e, muitas vezes, com uma ansiedade enorme para escrever, ele coloca sempre as primeiras sílabas das palavras. Quando vai escrever uma palavra só, consegue lembrar de todas as sílabas e fazer uma palavra, isso é o que a gente chamaria de uma escrita alfabética.

15 – E quanto à legibilidade do texto, professora Jonê?

Quando a criança está escrevendo um texto autoral como eu expliquei, ela vai na fluência do discurso dela e só escreve as primeiras sílabas das palavras, ficando um texto não legível, ela não consegue ler o que escreveu e nem a melhor professora consegue. Sento-me ao lado dela e digo assim: “vamos ler?”. Ela olha para mim assustada, como quem diz “mas eu não escrevi?”. Então, vamos lendo e ela vai me dizendo. Algumas vezes, essa criança vai lembrar o que ela quis dizer, outras vezes, ela não vai. Quem nos ajuda a pensar isso é Smolka, quando ela discute a criança na fase inicial da escrita. Smolka diz que a criança tinha a hipótese silábica, por exemplo, a criança queria escrever “carro” e escreve “au”, quando ela vai ler, ela lê “au” e aí ela ressignifica e diz: “ah eu queria escrever au-au”. É esse processo discursivo de leitura e escrita que estamos vivendo em sala de aula. Então, eu volto a dizer: o nosso trabalho ele é menos para “todo mundo” e ele é mais para olhar a etapa de cada um. O professor vai dizer: “Mas Jonê, eu tenho 35 alunos em sala!”. Sim, então vamos todos fazer uma lista do que tem na sala de aula? E a lista vai permitir que depois, na hora em que eu levar para casa para ler, eu vou saber que era uma lista de material. A criança que escreveu “ai” para lápis, eu vou saber que é lápis. Mas o “ai” fora dessa lista eu não vou conseguir ler. Vou ficar com aqueles encontros vocálicos que eu dei como aula lá na década de 90, “ai”, “ei”, “ui”, como se isso fosse linguagem. Isso é artificialização porque pensamos que é mais fácil trabalhar os sons vocais porque eles saem sem obstáculo sonoro.

 

16 – Então, professora Jonê, qual o caminho para que não haja “artificialização” na alfabetização dos alunos?

Todas as consoantes são produzidas com algum obstáculo. Professor, professora, não precisamos trabalhar com “ai”, “ei”, “oi”, “ui”, “ba”, “be”, “bi”, “bo”, “bu”, “bão”. Sabe o que precisamos trabalhar? Com as palavras de verdade, com texto vida, com os textos que acontecem em sala, trabalhando também com as atividades do material impresso do município e com o livro didático. Eu vou dosar o meu dia entre atividades, que eu sei que são altamente produtivas para cada criança, e atividades que eu sei que são para a turma toda.

 

17 – Para encerrar essa entrevista, quais seriam suas considerações finais?

Ser professora e professor é desafio. Nós professores agimos o tempo todo na urgência. Eu sei que, no meio da sala de aula, estamos vivendo com todas essas diferenças e com os sentimentos e sofrimentos que não são fáceis de administrar, mas eu posso pensar assim: “todo dia eu terei quarenta minutos de atividade que será particularizada, no sentido de que cada um terá seu tempo”. Eu estou fazendo uma proposta, meus colegas, para ir ganhando espaço aos poucos na autonomia que eu quero ter, porque, se eu estou falando que tenho que ter um trabalho autoral do aluno, eu também aposto no trabalho autoral do professor. O trabalho que o professor terá é o de encontrar onde ele terá mais confiança.  Falo de um trabalho que faço há mais de vinte anos.  Eu sempre trabalhei de uma maneira, e “descobri” a Emília Ferreiro nos anos noventa.  Então, passei a trabalhar numa perspectiva discursiva interacional, na ousadia com o trabalho de texto, estou chamando de ousadia porque é um caminho que irá trabalhar com a particularidade de cada um.

Para dar mais um exemplo do meu trabalho em sala de aula, os alunos ouviram um conto popular muito bonito que a Bia Bedran gravou: “A história do Vento Norte”.  Nós ouvimos a música do Vento Norte. Depois que as crianças ouviram, tinham que resumir essa história. Vejam o desafio que foi. Eram dois estudantes, um sentado do lado do outro e um deles tinha o poder de síntese, em um parágrafo contou a história com início, meio e fim. O aluno do lado dele contava em quatro folhas todos os detalhes. Quando ele olhou para o lado e viu o colega escrever em um parágrafo, veio para mim chorando: “Eu não consegui resumir, eu escrevi”. Eu disse: “Não! Esse é seu estilo”. Fiquei intermediando os dois, enquanto a turma se desafiava. Veio uma menina para mim e disse que: “você falou que era o resumo, né?”. Aí ela me entregou um parágrafo também. Eu leio e digo para ela: “mas, peraí, o seu resumo não tem o início, meio e fim da história. Cadê? E essa passagem?”. Então, ela voltou e (re)fez. O que eu estou dizendo aqui? Sim, nós temos escritores mais concisos, outros que pejorativamente a gente chama de prolixos. Eu não vou chamar de prolixos. Eu vou chamar de mais detalhistas. Eu tenho isso em sala de aula, eu tenho essa diversidade. Agora, qual era a minha exigência mínima? Que a história fosse narrada com início, meio e fim. Sim, podemos definir em maior número de linhas ou em menor número de linhas, isso é uma outra discussão.  Só estou dando aqui um exemplo, mais um, eu estou tentando discutir com vocês o quanto de possibilidades temos em sala de aula e o quanto a gente “embotece” essas possibilidades quando ficamos atrás somente de ensinar, sem muita elaboração do que seja ensinar-aprender.

Os livros didáticos já fazem isso. O meu trabalho docente também faz a mesma coisa? É com X ou é com CH? É com R ou com RR? Colegas, isso é importante, mas como um dos potenciais do trabalho em sala de aula. Não pode ser o meu aspecto central de trabalho docente, porque isso pode ser feito em casa, no final de semana eu mando o livro didático para casa e a criança faz a tarefa sem muita ajuda. Agora esse trabalho em que eu vou discutir o que é uma síntese de texto, isso não tem folhinha ou livro didático que ensine. É só na interação pedagógica.

Jonê Carla Baião

Professora alfabetizadora aposentada da Rede Municipal de Educação do Rio de Janeiro. Atua no CAp-Uerj desde 2003, em turmas dos anos iniciais e na pós-graduação, orientando alunos das redes públicas no curso de Mestrado, PPGEB

PRODUÇÃO BIBLIOGRÁFICA DA ENTREVISTADA

BAIÃO, Jonê Carla; SONCO, Claudia Hernandes Barreiro; FERNANDES, Andrea da Paixão. Por que Paulo Freire ainda hoje? O que dizem mestrandas e mestrandos na Disciplina: “Educação e Transformação em Paulo Freire”? Ensino, Saúde e Ambiente, v. 14, n. esp., p. 95-120, 14 dez. 2021.

BAIÃO, Jonê Carla; SILVA, A. G.; VENANCIO, A. P. Mãos negras sobre papéis brancos: carta de três negras mulheres a Paulo Freire por uma pedagogia antirracista. Revista Eletrônica Ensino, Saúde e Ambiente, v. 14, p. 1-5, 2021.

OLIVEIRA, L. R. S.; BAIÃO, Jonê Carla. Escola Sesc Pantanal: espaços e leitores no cotidiano Escolar. Revista Polyphonía, v. 29, p. 213-229, 2019.


BAIÃO, Jonê Carla; BARREIROS, Cláudia; SANTOS, Margarida. “Eu aprendi a ler no final”: reflexões sobre diferentes tempos e processos de aprendizagens. Revista Digital Formação em Diálogo, v. 1, p. 40-53, 2019.


BAIÃO, Jonê Carla; BARREIROS, Cláudia Hernandez; SANTOS, G. B. O que fazer com tantos livros? O ensino fundamental em 9 anos, a(s) infância(s) e a(s) literatura(s). Linha Mestra, v. 1, p. 755-759, 2014.

BAIÃO, Jonê Carla; BARREIROS, Cláudia Hernandez. Eu aprendi… eu esqueci…: processos identitários e variantes maternas. Linha Mestra, v. 21, p. 81-85, 2012.


BAIÃO, Jonê Carla. O professor leitor e formador de leitores. Salto Para o Futuro, v. 18, n. 16, p. 16-23, 2008.

BAIÃO, Jonê Carla. “Muito obrigada por ler o que eu escrevi”: professora que forma leitoras e leitores- lendo os textos das alunas e alunos na educação básica. In: MOTTA, Flávia Miller Naethe; SOUZA, Ana Lucia Gomes de (org.). Tem heterociência na Baixada: produções bakhtinianas em territórios fluminenses. São Carlos, SP: Pedro & João, 2022. p. 173-189.

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